Como mãe e ativista feminista de longa data, perdi as contas de quantas vezes vi essa frase em cartazes de manifestações feministas ou em perfis nas redes sociais. É inspirador e cativante quando vemos meninos pequenos segurando cartazes que parecem afirmar o compromisso de não se dobrarem a esse sistema vil que torna nossos filhos contra nós e contra outra outras mulheres.
O que nos move tanto não é só o fato de ser uma criança que segura – o que cativa imediatamente, quer porque vemos nas crianças a promessa de uma nova geração, uma geração melhor, quer porque vemos neles a projeção de nossos próprios filhos -, mas principalmente a promessa de que podemos mudar esse sistema se dermos o nosso melhor mudando a mentalidade de nossos filhos.
Uma revolução que começa pela mudança e pelo exemplo que tem em casa, com a mãe. Na unidade nuclear do sistema patriarcal: a família. Uma revolução de dentro para fora, do indivíduo para o coletivo. Do pessoal para o político.
“Com mãe feminista, eu não cresço machista”… Mas será mesmo?
A criança na família
Sem dúvidas que a educação em casa tem um papel fundamental na formação psicológica, no estabelecer dos valores e na nossa compreensão do mundo de modo geral. A família — para o bem ou para mal — é a nossa primeira experiência e referência de como é a vida em sociedade e como são os papeis sociais.
Várias estudiosas e estudiosos, de diferentes campos da ciência – sociologia, psicologia, neurociência, biologia, entre outros – analisaram como o que a criança vê em casa estipula suas primeiras referências de mundo: de o que é uma mulher e o homem, quais são os seus papeis na sociedade, quem faz o quê (quem lava, quem cuida, quem decide, quem é forte, quem é fraco, quem tem a “voz mais forte”, etc).
Citando um texto publico no site Jineologi.org:
“A família também é o ponto em que valores sociais mais amplos são transmitidos. É quase óbvio demais para dizer, mas de onde sua família é, qual é o seu fundo religioso e qual a relação com a política, tem um enorme efeito sobre como você se desenvolve. Os valores positivos da comunidade e a ética que mantêm a sociedade unida são transmitidos em casa, quase sempre pelas mulheres; compartilhando habilidades, contando histórias, mostrando cuidado.
Ao mesmo tempo, mentalidades capitalistas, por exemplo, uma ética de trabalho derivada do protestantismo, são instiladas nas mesmas cozinhas e salas de estar. A maneira como sentamos, comemos, dormimos e compartilhamos o espaço varia muito, dependendo de nossa cultura provir de protestantes, católicos ou outros antecedentes religiosos. Como entendemos partes de nossa natureza básica e o efeito dos códigos de dever, culpa, vergonha e moral sobre ela.”
(Em “A Família no Contexto Europeu”)
Por isso, mesmo a família sendo, como acontece na maior parte do Brasil, chefiada por uma mulher, mãe solo, e mesmo que essa mulher seja a mais feminista de todas, essa criança receberá os aprendizados que sua mãe transmite, mas também aprenderá com o que vê na prática e a contradição: sua mãe é a única que faz as tarefas? O pai é ausente e se demoveu da responsabilidade de criar a criança que gerou? Como os demais familiares se portam? Como a vizinhança fala disso, fala com ela e sobre ela?
Aqui entramos no primeiro ponto: o ensinamento direto dentro de casa, mesmo que a mãe seja muitíssimo feminista e elucidada sobre a condição de mulher e as opressões que sofre por isso, entra em direta contradição com o cotidiano e a “vida lá fora”.
“Com mãe feminista, eu não cresço machista…”
Dado esse enquadramento, ouso dizer que essa frase carrega um peso quase… antifeminista. Por mais contraditório que isso pareça. Antifeminista porque responsabiliza a mulher, por um lado, e antifeminista porque ignora uma análise mais estrutural da opressão.
Ignorando que lá fora existe toda uma estrutura (econômica, política, religiosa, legal, cultural) que quase sempre está em contradição direta ao que tentamos ensinar — especialmente no que diz respeito a uma educação feminista, que questione a ideia de mulheres serem naturalmente subalternas e homens serem naturalmente superiores — essa frase joga, como todos, nos já carregados ombros das mães a responsabilidade de “prevenir” que seu filho seja mais um machista misógino.
Isso é responsabilizar mulheres pela opressão que sofrem. Como quem diz: se vocês próprias não criassem tantos machistas, talvez não sofressem opressão.
Eu quero tirar esse fardo dos ombros das mães, sem, contudo, tirar a importância do nosso papel em promover a mudança. Porque o que nos oprime é muito maior do que a conduta individual de cada um de nossos filhos. Quando o machismo é estrutural, institucionalizado – está entranhado nas leis, na organização social, nos trabalhos, nos espaços, na cultura, na religião – é indiferente se um indivíduo é machista ou não. Porque isso é muito maior que Fulano ou Ciclano.
Claro, Fulano ou Ciclano podem ser os perpetradores diretos da nossa agressão, da violência, do sexismo e discriminação. Contudo, o que nos oprime é maior: é um legado histórico de políticas de guerras, de colonialismo, de exploração, de tortura e perseguição de mulheres, de aprisionamento de mulheres às quatro paredes e fora dos espaços públicos… Que resultaram nessa horrorosa configuração social que temos hoje em nossa desvantagem.
Sim, façamos todas a nossa parte.
Vamos trazer a educação feminista, e o exemplo, para dentro de nossas casas.
Vamos educar para a equidade, para um mundo não-sexista, onde nossas filhas não serão as futuras vítimas e nossos filhos não serão os futuros agressores.
E, mesmo assim, podemos nos comprometer em não reforçar a narrativa da mãe guerreira responsável por abraçar e salvar o mundo sozinha a sociedade de algo muito maior que ela.
Como dizia o grande Paulo Freire:
“Ninguém liberta ninguém. Ninguém se liberta sozinho. As pessoas se libertam em comunhão”