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Os dados sobre abuso e exploração sexual infantil no Brasil mostram que essa é uma violência quase onipresente na vida das crianças — e a falta de educação sexual em casa e nas escolas contribui para essa violência virulenta.

Abuso sexual infantil no Brasil

Segundo levantamento do Disque 100, em 2019 foram registradas 17.093 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Mais de 78% desse total (mais precisamente, 13.418 casos) são de abuso sexual, sendo que outros 21% são denúncias de exploração sexual [3.675](fonte: Agência Brasil)

 

É importante frisar que especialistas estimam que apenas 10% dos casos são denunciados. Isso significa que esses mais de 13 mil abusos são, mais provavelmente, próximos de 130 mil, bem como a exploração sexual está mais próxima de 30 mil casos do que o número relatado.

 

Os números são chocantes, porém ainda mais importante é debater o contexto em que esses abusos ocorrem: mais de 70% dos casos, a violência foi cometida na casa do abusador ou da vítima. Mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros familiares.

Educação sexual como ferramenta de proteção

Uma enquete online realizada com a participação de 244 mulheres sobre assédio e abuso sexual perguntou às participantes o que teria ajudado a lidar com a experiência de assédio/abuso sexual que viveram . Três pontos foram maioritários entre as respostas:

  • Saber reconhecer quando acontece o abuso (educação sexual)
  • Saber que os pais acreditariam e não a culpariam (confiança)
  • Saber que podem dizer não e recusar toques de terceiros (consentimento)

 

Embora os três pontos – Educação Sexual, Confiança e Consentimento – possam ser debatidos autonomamente, na verdade, todos se tratam de uma coisa só: educação sexual.

 

No Brasil, um discurso contra a educação sexual para crianças e adolescentes ganhou forças e foi instrumentalizado para campanhas políticas nos últimos anos. Desde as fake news sobre a distribuição de “mamadeiras de piroca” nas escolas e creches até a polêmica gerada em torno de um livro que teria sido supostamente adquirido pelo Ministério da Educação para a rede pública de ensino que ensinava ou estimulava crianças a fazerem sexo.


Na altura, o atual presidente Jair Bolsonaro, então deputado em exercício, “denunciava” nas suas redes sociais que isso era uma “
porta aberta para a pedofilia”.

Na verdade, o cenário dos sonhos de qualquer pedófilo é justamente uma sociedade em que crianças não recebem educação sexual .


Afinal, o propósito da educação sexual é justamente ensinar a identificar a violência sexual, explicar sobre consentimento, instruir a como diferenciar cuidado de abuso e, sobretudo, criar uma autopercepção sobre os limites do próprio corpo.

 

Mas este é o nosso cenário atual: a falta de educação sexual é o paraíso dos abusadores. E os dados divulgados ano após ano pelo Disque 100 mostram isso. Precisamos de uma abordagem diferente para mudar o jogo.

Educação sexual infantil
Créditos: “Pipo e Fifi”, livro infantil sobre educação sexual

Como ensinar às crianças sobre abuso e consentimento

Para crianças menores de 6 anos

“Gostaria de saber que o corpo é meu e que eu posso dizer não quando um toque me deixa desconfortável” – Resposta de uma participante da enquete

Não obrigue a criança a abraçar ou beijar outra pessoa

A cena mais comum nas despedidas de festas, reuniões familiares e visitas: a criança que não está à vontade e é pressionada pelos adultos em volta a darem um beijo de despedida ou cumprimento a um adulto que ela desconhece.

É importante ensinar às nossas filhas e filhos que eles não são obrigados a beijar e abraçar ninguém se eles estiverem desconfortáveis com isso. Qualquer adulto pode passar muito bem sem receber o beijo de despedida do seu filho e da sua filha. E até pode ser muito pedagógico que eles ouçam a sua explicação à criança.


Isso é especialmente importante com adultos, mas é instrutivo que estimule esse comportamento e aprendizagem mesmo em relação aos coleguinhas, quando tiver a intenção de demonstrar afeto fisicamente. Por exemplo, invés de dizer “
Dê um abraço à Gabi”, diga “Vamos perguntar à Gabi se ela quer um abraço?”.

Explique corretamente à criança o que são partes íntimas

Segundo a psicologia, crianças começam a desenvolver uma noção do próprio “eu”, delas mesmas como pessoas e corpos autônomos no mundo, a partir dos 3 anos. Por isso, lembre-se que ela ainda está desenvolvendo suas percepções sobre o próprio corpo, os próprios limites e o próprio espaço. Ensinar o que são partes íntimas (bumbum, vulva, pênis) e dizer que as pessoas não podem tocar ali é crucial para que ela entenda que não é igual a tocar um braço, mão ou perna.


Alguns pais e mães tentam fazer isso e optam por uma linguagem infantilizadora que não emprega os nomes corretos das partes. Chamam de “pipi” ou “larissinha” ou “florzinha”, como se houvesse algo de intrinsicamente mal no nome dos órgãos sexuais. Isso também pode dificultar a identificação do abuso. É importante que a criança saiba nomear corretamente as partes íntimas caso precise relatar toques indevidos.

Esclareça para quem ela pode pedir ajuda

O abuso pode ser confuso, especialmente nessa fase em que ainda estão aprendendo como as pessoas se relacionam entre si e nos diferentes espaços sociais. Por isso, é importante estimular na criança o hábito de contar sobre ocorrências desconfortáveis e explicar a quem podem contar (mãe, avó, educadora, por exemplo).

 

Se alguém fizer você se sentir mal na escola, vá até a professora e conte o que aconteceu e como você se sente”; quando visitarem casas de amigos ou tiverem visitas em casa, por exemplo, frisar que “se alguém fizer você se sentir mal, conte à mamãe o que aconteceu e como se sente”.

Ensine o poder das palavras “NÃO”, “PARE” e "EU NÃO GOSTO DISSO"

É muito importante explicar à criança que não faz mal dizer “não” às coisas que fazem com que ela se sinta mal. Que ela pode dizer “não” e “pare” quando estiver desconfortável. Entenda que, apesar de parecer algo ‘fácil’ e ‘bobo’, isso é uma prática e um caminho que se constrói diariamente. Especialmente porque as crianças são ensinadas, direta ou indiretamente, a fazer muitas coisas que nem sequer entendem ou que talvez não gostem para conquistar a atenção e as graças dos adultos.

Se a criança tiver menos de 6 anos, pode explicar sobre as palavras “Não” e “Pare” e usar uma brincadeira para que ela entenda, como brincar de fazer cócegas.

Fale sobre os “sentimentos estranhos”

Algumas situações nos fazem sentir algo estranho: o que chamam “intuição” geralmente é um sistema de alerta que o cérebro desenvolveu para situações de perigo. Explique à criança que se ela “se sentir estranha” numa situação, ela pode se afastar e pedir ajuda. Ela pode recusar e dizer “não gosto disso”.

Brincar de “E se?”

Para fixar os aprendizados, pode brincar de imaginar situações para ensinar a criança o que fazer. “E se alguém tentar tocar na sua parte íntima?”, “e se alguém tentar dar um beijo que você não quer?”, “e se um homem pedir para você segurar no pipi dele?”. Não se coloque numa posição de julgar, com expressões que possam “influenciar” a resposta. Apenas deixe a criança responder e ajude com as orientações corretas.

semáforo do consentimento
Semáforo do Toque é um recurso pedagógico para ensinar de forma leve sobre "Toque Bom e Toque Ruim"

Para crianças maiores de 6 anos e pré-adolescentes

Ensine a criança a nomear e falar sobre seus sentimentos

É crucial estimulá-los a falar sobre o que os faz sentir bem e o que os faz sentir mal. Isso não só ajuda a estabelecer uma relação de confiança, mas também ajuda a criança a esclarecer e perceber na própria cabeça os seus receios sobre determinadas situações e pessoas.

Ensine que o comportamento dela pode afetar o outro

Explicar que é importante respeitarmos o espaço e o sentimento dos outros e que a escolha que fazemos pode impactar as pessoas ao nosso redor. Claro, também frisar como isso pode acontecer dos outros para ela própria. Comentários sobre o cabelo ou o corpo de outra criança, forçar abraço ou beijo em outra amiga ou amigo, etc.

Seja claro sobre as regras da casa com relação à nudez

Onde e quando a nudez é OK dentro de casa, como são as regras se tiverem visitas, o que é e o que não é legal. Pode ajudar a fixar melhor o aprendizado se fizerem as regras em conjunto.

Estimule a autoestima da criança

Fale sobre a mudança dos corpos, que isso é natural e acontece com todos e como vai se desenvolver com o tempo. Evite julgamentos estéticos sobre o corpo da criança, ensinando que o valor dela não está no corpo que tem, mas nas suas capacidades, na sua mente e nos seus valores.

Muitas crianças podem confundir o assédio e o abuso como uma espécie de valorização ou validação do adulto. Como resultado, acaba gerando traumas de hiper estimulação da sexualidade ou acabarem por desenvolver depressão, disforia, borderline, entre outros por causa da distorção da autoimagem.

Frases para a educação sexual e proteção do abuso

  1. O seu corpo é só seu, ninguém pode tocar se isso te deixar desconfortável.
  2. Eu acredito em você, você pode me contar tudo.
  3. Você é importante.
  4. Você pode dizer “não” e “pare” se algo te faz sentir mal.
  5. Você pode e deve pedir ajuda se alguém te fizer mal.
  6. Não é sua culpa.
  7. Não importa quem for, se qualquer pessoa te tocou e você não se sentiu bem, não é um toque do bem. Conte para alguém.

Frases que podem colocar as crianças EM RISCO

  1. Não conte para ninguém, é segredo.
  2. É rapidinho, vai acabar logo.
  3. Vai doer, mas é só um pouquinho.
  4. Se fizer isso, não vou mais gostar de você.
  5. Se você fizer isso, dou um presente…
  6. A culpa é sua por….
  7.  

Como identificar sinais de abuso nas crianças pelo comportamento

  1. Mudar repentinamente o comportamento com alguém em particular. Ex: começar a falar palavrão com aquela pessoa, se afastar sempre que pode, recusa estar na presença dela, é “mal educada” com um adulto em específico;

  2. Regressão no comportamento. A criança começa a se comportar como se fosse mais nova, como voltar a chupar dedo, voltar a fazer xixi nas calças, regressão na fala, etc.

  3. Mudança de hábitos. É muito comum que a criança vítima de abuso comece a mudar suas roupas e queira vestir roupas mais folgadas, largas, compridas para esconder o corpo. Ela também pode começar a se “descuidar” de propósito com a higiene pessoal.

  4. Desenhos com genitais. Se a criança não costuma desenhar esse tipo de detalhe e, de repente, seus desenhos começam a mostrar genitais, é um sinal de alarme.

  5. Hiperestimulação sexual. Se, por um lado, é normal que crianças, inclusive pequenas, mexam nos seus genitais (porque estão descobrindo o próprio corpo), se perceber que a criança está constantemente se tocando de forma estimulatória, pode ser um sinal de abuso.

O que fazer se identificar sinais de abuso na criança?

Se identificar um ou mais dos sinais com aqueles descritos acima, o primeiro passo é procurar um especialista para receber orientação. Uma psicóloga infantil ajudará a criança falar sobre o ocorrido. Também pode pedir que a psicóloga da creche ou escola acompanhe mais de perto.

 

Sobretudo, é importante ouvir a criança. Ajudá-la a falar sobre o ocorrido, o que pode ser difícil para ela (seja pela confusão ou trauma ou porque o abusador geralmente tenta ameaçar ao silêncio ou manipular como “segredo”). Por isso, ela precisa sentir que será ouvida, que seus sentimentos serão validados e que ela está segura.

 

DENUNCIE

Não blinde o abusador porque é da família ou porque é um conhecido. Não “deixe para lá”, pois isso pode passar a mensagem de que o que aconteceu com ela não é tão importante, não tão importante quanto o abusador, pelo menos. Denuncie às autoridades competentes. Algumas que você pode recorrer para pedir ajuda são:

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