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Era um daqueles dias difíceis da maternidade. E realmente quero dizer UM DAQUELES.

 

Um daqueles dias em que a gente acumula tanto estresse, tanta frustração, tanto cansaço que até o zunzunzum de uma mosca na orelha faz a gente chorar perguntando “por que tudo tá dando errado hoje?”. Em qualquer outra ocasião, seria apenas uma mosca e vida que segue.

 

É aquele dia em que a criança que se esgoela e chora desalmadamente por horas ininterruptas e a gente não sabe o porquê. Que a mãe incorpora o próprio Hipnos, o deus do sono, mas o bebê não quer dormir. A gente não sabe se é fome, se é dor, se é dente, se é cólica. Mas da nossa dor a gente sabe: não é só a criança chorando.

 

São as noites mal dormidas acumuladas, acordando a cada duas ou três horas para amamentar. É o esgotamento físico, emocional, mental. É o nunca conseguir beber uma xícara de café inteira e sempre comer as refeições frias, mesmo quando nós é que as fizemos. É a ansiedade de ter tempo, lazer, descanso. De fazer algo por nós mesmas e sentir que estamos vivas. Que ainda somos uma pessoa. É sobre se trancar no banheiro e fazer xixi vinte vezes por dia só para ter um minuto, sessenta segundinhos de paz e silêncio.

 

É tudo isso junto e misturado. E a cereja do bolo, não mais que a cereja no topo de um bolo de caca, é uma criança que chora desalmadamente, grita, esgoela e ninguém consegue resolver.

 

Lembro da sensação de fadiga mental, de esgotamento total de forças. Tão intensa que parecia que meu cérebro tinha derretido como um pedaço de ferro em brasa quente e colado no fundo da cabeça. Latejava, queimava e simplesmente não conseguia fazer nada. Nem pensar, nem dialogar, nem pensar “alternativas”.

 

Eu, à beira de um esgotamento, tentava me conter e lembrar de todas as teorias sobre comunicação não-violenta, método montessori, parentalidade positiva… E entrava em parafuso.

 

Às vezes, o único remédio para uma mãe cansada, e a única coisa que realmente conseguimos fazer, é sentar e chorar junto com a cria.

 

É o momento em que somos obrigadas a encarar a realidade: a mãe guerreira é uma fantasia e temos de lidar com a banalíssima humanidade – falível, finita, limitada – que nos cabe.

 

Sempre nos disseram o contrário, mas, afinal, somos mesmo humanas. Precisamos mesmo de ajuda.

 

A tal da culpa materna é que faz pesar ainda mais os ombros já cansados de quem trilha a estrada da maternidade. A maternidade é um caminho cheio de armadilhas de culpas, pressão e cobranças. Exigem que sejamos as salvadoras do mundo sendo “mães melhores”, criando humanos melhores. Nós tentamos tirar leite de pedra, afinal, óbvio que não é possível ser uma mãe melhor sem condições melhores. Sem apoio, sem ajuda, sem suporte.

 

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, pensamos nós, lá no fundo do poço, sozinhas. E é verdade, mas na vida real é “quem pariu Mateus, que balance”.

 

Mas a utopia é necessária para mover os sonhos e criar vislumbres de um futuro melhor. Por isso, insisto em pensar e me perguntar como seria, na vida real, uma aldeia que poderia realmente criar uma criança?

 

Uma aldeia que tirasse o fardo da maternidade guerreira, solitária e culpabilizadora dos ombros das mães e transformasse numa responsabilidade e compromisso social e coletivo para dias melhores. Como seria?

 

Devo admitir que, nesses dias aterradores, quando a tempestade passava, eu sempre acabava por pensar nas mães que tinham menos que eu. Que tinham menos dinheiro, que não tinham onde morar, que não tinham comida, que moravam num barraco de pau a pique. E tudo isso me fazia perceber que a aldeia tinha de ser mais que pessoas.

 

O problema certamente começa em quem cuida, ou melhor, quantos cuidam. Mas certamente não se resumia a isso. O problema também eram as condições para cuidar e ser cuidado: espaço de lazer, de crescer, de aprender, de morar, ter o que comer, ter acesso aos cuidados de saúde para nenhuma criança morrer por falta de vacina, atendimento ou por tiro de bala perdida.

 

Claro que também seria necessário que todos na Aldeia entendessem que criar uma ambiente melhor para uma criação melhor começaria muito antes da maternidade. Muito antes do nascimento da criança que partilharemos os cuidados.

 

Também teria de envolver a humanização do parto, o respeito ao nascimento: livre de violências para mãe e bebê. Também teria de envolver a completa reconstrução do papel do pai. Teria de acabar até, ou talvez principalmente, com os tabus sobre o corpo feminino (a menstruação, a sexualidade, o aborto, o desejo).

 

Para remover o fardo dos ombros das mães é imperativo remover também os rótulos que nos agrilhoam: guerreira, santa, anjo, divina, puta, manipuladora, aproveitadora, preguiçosa, desleixada.

 

É também assumir que nem tudo depende de nós. Que não precisamos fazer tudo sozinhas e, portanto, que também somos substituíveis em muitas das funções que hoje exercemos com “exclusividade”. E, embora sejam parte do fardo e do problema, que muitas de nós se apegam para provar que a vida, que não nos permitem viver individualmente, tem sentido mesmo vivendo em função de outro e só. E isso não é um problema menor.

 

Na aldeia que precisamos para que seja possível criar uma criança, será necessário termos espaços de lazer seguros. Será preciso partilhar o trabalho doméstico e as responsabilidades de cuidados. Talvez cozinhas e lavanderias públicas. Creches e escolas de qualidade, acessível para todas sem custar o salário do mês, a tempo integral ou que tenhamos nós todos uma jornada de trabalho reduzida para aproveitar também a vida em comunidade.

 

Na aldeia que precisamos, será preciso ter espaços de aprendizagem que realmente ensinem as coisas importantes para a vida: inteligência emocional, responsabilidade social, habilidades de sobrevivência (como natação, orientação geográfica e, por que não?, cozinhar e limpar).

 

Na aldeia que precisamos, a arte e o intelecto precisam ser tão ou mais valorizados que a produção mecânica do trabalho autômato. Caso contrário, continuaremos reproduzindo essa vila que temos hoje, que não cuida das crianças porque podem jogar nos ombros de muitas mães guerreiras exaustas.

 

Na aldeia que precisamos para realmente conseguirmos criar nossas crianças, teremos de educar para a paz e a cooperação e a empatia, não para a competição, a guerra e a desigualdade.

 

Nessa aldeia, o esgotamento e a culpa materna não existirão, porque eles só podem existir num mundo que isola, pune e responsabiliza exclusivamente mulheres pela criação de “filhos melhores” sem condições melhores. O encontro com a minha sombra não será um problema. E decidir ter filhos também não.

 

Mas para construir essa aldeia, precisamos começarmos agora. Não “pedindo ajuda” (embora não tenha nada de errado nisso), mas sim exigindo a divisão de tarefas iguais. Temos direitos como todos.

 

Começa agora entendendo que “culpa materna” é um jogo para tirar nossos olhos dos problemas estruturais que tornam a maternidade um fardo e colocá-los em nós, como se fosse um problema individual. Começa agora, criando filhos e filhas melhores, cobrando políticas públicas e não mais aceitando migalhas.

 

Só assim poderemos criar crianças como uma aldeia invés de matar lentamente aquela que pariu Mateus.

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  • Q texto 😢! Impossível não se emocionar.

  • Não é preciso uma aldeia para criar.

    É preciso que pai e mãe, que prazerosamente fizeram a criança, assumam suas responsabilidades.

    Inclusive, não teve aldeia alguma na hora de fazer.

    Cobrem dos pais das crianças e virem adultos…

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