Todo ano é a mesma coisa: aproxima o dia das mães ou o dia dos pais, começam os parabéns para as “pães” guerreiras. As super heroínas que criam sozinhas os filhos e filhas que sozinhas não fizeram.
Numa sociedade que culpa mulheres pelo que fazem, pelo que deixam de fazer e, inclusive, pelo que homens fazem ou deixam de fazer, a maternidade é obrigatória… Mas a paternidade é facultativa. E adivinha só qual das duas alternativas é condenada?! Dica: os homens vão bem, obrigada.
Não sei quem inventou a palavra “pãe”, que supostamente é a junção criativa de “pai” e “mãe”, mas tenho a absoluta certeza de que essa pessoa não estava interessada em melhorar as condições das mulheres e crianças. A palavra pretende representar a mulher que cumpre os dois papéis junto dos filhos, o papel de mãe e também o de pai. A verdade é que essa pessoa não existe.
Não existe pãe: existe mãe.
E existe o abandono paterno.
No Brasil, mais de meio milhão de crianças não têm o nome do pai na certidão. O mesmo país que dificulta o acesso ao DIU e à laqueadura, que não consegue prover todo o território nacional com educação sexual, planejamento familiar e distribuição de contraceptivos femininos, no qual o aborto é punível com prisão… tolera, omite e eufemiza o abandono paterno e o abandono afetivo dos pais ausentes.
E é justamente aqui que essa palavra falha miseravelmente. Ela faz exatamente aquilo que esse país da maternidade compulsória e da paternidade facultativa sempre fez: dar tapinhas nas costas das mães, disfarçando a sobrecarga como “heroísmo”, como “esforço” (ah, a meritocracia da maternidade…!) ou como “amor”.
Sempre houve uma propaganda fortíssima na sociedade para convencer mulheres de que amor, para mulheres, é igual à anulação. Nós aprendemos desde cedo:
“Se continuar assim, não vai arranjar namorado”
“Ninguém gosta de menina mandona”
“Tem que mudar esse seu jeito de ser ou vai ficar sozinha”
Depois de tantos anos seguidos de adestramento, carregamos, é claro, essa lição para os nossos relacionamentos. Qualquer grupo de mães e grávidas nos fóruns da Internet e nas redes sociais vão mostrar exatamente isso: o amor, para a mulher, é medido por quanto ela está disposta a se anular para agradar o homem.
Nos grupos de maternidade, mães desabafam e pedem ajuda para situações cotidianas, que podiam ser facilmente explicadas com noções básicas (que não temos) sobre o nosso corpo e que podiam ser resolvidas com verdadeiro respeito nas relações.
“Depois que tive filho, não tenho vontade de fazer sexo, mas meu marido me pressiona e diz que não aguenta esperar tanto”, ao que outras mulheres repetem o que aprenderam: “Tem que fazer sem vontade mesmo! Quem não dá assistência, abre para a concorrência!”. “Ele me agrediu, me trata como um lixo, mas as crianças gostam dele”, ao que outras respondem “fica pelas crianças, é muito ruim crescer sem pai…”.
Não importa o que aconteça, é a ela que é solicitado se anular. É à mãe que é exigido o gesto “altruísta” de dar prioridade aos sentimentos, à vida, à carreira e ao dinheiro dele. Nunca o dela.
O medo de ser “mãe solteira” é fundamentado não só num moralismo religioso ou numa vergonha de fundo machista, mas sim na experiência prática de discriminação da sociedade: mulheres ainda ganham menos que homens, ainda são maioria na informalidade, ainda são as primeiras a serem demitidas numa crise econômica e política, são discriminadas por terem filhos e por não ter, pela mera possibilidade de engravidar. Isso significa que mulheres conseguem pagar menos comida, menos habitação, menos… sobrevivência. Para si e seus filhos.
E a figura (supostamente indesejável, asquerosa e vergonhosa) da “mãe solteira” é utilizada como arma contra as mulheres. Toda mulher que já esteve grávida, especialmente aquelas que engravidaram durante a juventude, consegue reconhecer o olhar de julgamento quando passa na rua. Os olhos que seguem, os cochichos que comentam e os dedos apontados que advertem “aquela uma é mãe solteira” (que é como quem diz: “dá pra qualquer um”).
O mais engraçado é que somos assombradas e perseguidas por um fantasma, uma mera lenda urbana. Afinal, “mãe solteira” nem existe. Ser mãe não é um estado civil. Mãe é um papel social e uma capacidade da mulher, não uma palavra para descrever um relacionamento com um homem.
Mães podem ser solteiras, casadas, viúvas, enroladas, cheias de contatinhos… ou nada. E o valor de uma mãe – não, na verdade, de qualquer mulher – não é definido pelo homem que ela tem ou não do lado.
De alguma forma, a culpa e responsabilidade é sempre das mulheres, como se homens não fizessem e nunca tivessem feito parte da equação. Como se fizéssemos filhos sozinhas, engravidando com os dedos ou via partenogênese. Porque existe uma tradição na sociedade de controlar, culpar e demonizar a sexualidade da mulher.
Ela é Eva, responsável pela punição de toda a humanidade.
Ela é a Bruxa que merece ser queimada por saber curar pessoas.
Ela é a Rainha Louca por fazer o que todos os homens reis sempre fizeram.
Ela é Geni, a puta que merece ser cuspida e apedrejada.
No fim, a verdade é que a família tradicional brasileira é uma mãe solo cuidando dos filhos e se virando nos 30. Porque o abandono paterno é mato. É piada na mesa de domingo. É incentivado desde a infância entre meninos (“segura as cabritas que meu bode tá solto!”) e em toda a cultura popular, do MPB ao samba, do funk ao sertanejo. Está em todo lado.
No Brasil, existem mais de 11,5 milhões de mães solo. Um terço das casas brasileiras são chefiadas por mulheres. E mais da metade das casas chefiadas por mulheres no Brasil estão abaixo da linha da pobreza. Não por culpa das mulheres, não por culpa das mães.
E nada disso vai ser resolvido com tapinhas nas costas, flores no dia das mães e “parabéns a todas as pães” no dia dos pais.
“Pãe” é uma mordaça de seda na boca de todas as mães exaustas, sobrecarregadas e sem apoio no Brasil. “Pãe” é o “todo mundo erra” quando a mulher denuncia violência. Em outras palavras: apenas mais uma forma de poder continuar a explorar o trabalho das mulheres, chamando de “amor” para não reconhecer que é trabalho, e de omitir a responsabilidade do pai ausente e seu abandono afetivo.
Ser mãe no Brasil sempre foi “solo”, muitas vezes até quando estamos acompanhadas. E não depende das mulheres mudar essa realidade, afinal, quem abandona é o pai.