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Você conhece a mãe empreendedora. Eu também.

 

Talvez você seja ou já tenha sido ela. Eu já fui.

 

Ela é a mulher que engravidou quando estava desempregada. Ou ficou desempregada quando engravidou. E então ela magicamente se transformou numa incrível mãe empreendedora.

 

Ela abriu um brechó de roupas usadas. Ela abriu um ateliê criativo. Ela virou fotógrafa de bebês. Coach de liderança, influencer de Instagram ou dá dicas de organização em casa. Ela virou vendedora de pacotes turísticos. Ela virou microempreendedora individual e tem uma “micro agência de marketing”, em que ela é a dona, a empregada e a contadora. Ela abriu um pequeno negócio de comida no pote, virou boleira, aluga decorações para aniversários.

 

Nós todas conhecemos a mãe empreendedora.

 

Ela está melhor assim: fora do mercado. Porque agora ela faz o próprio horário e ainda pode fazer uma pausa para lavar a louça do almoço e dar papinha para o bebê às 4h da tarde.

 

Isso significa que ela pode trabalhar com olheiras sem ninguém torrar a paciência. E que, entre uma ou outra mamada da criança, ela costura ou cozinha ou atende o telefone. Isso significa que 23h da noite, quando ela queria estar dormindo, ela está empreendedoramente trabalhando no seu próprio negócio.

 

Uma mulher de iniciativa. Mulher de sucesso. Dona da própria carreira. Sem chefe. Não raramente, sem marido (porque a ausência paterna é tolerada socialmente, mais do que a ausência dela para trabalhar).

 

Empreendedora! Líder!

 

Nós todas conhecemos a mãe empreendedora.

 

Ela tem as mesmas preocupações com os filhos que todas as outras mães. E o filho dela tem horários como os filhos das outras mulheres. Mas as outras mulheres têm horários fixos e deixam os filhos na creche.

 

A mãe empreendedora às vezes trabalha com o filho no colo e tem de atender enquanto amamenta, cozinhar enquanto telefona e, enquanto toma banho, ela chora de cansaço no chuveiro porque o filho está chorando na porta. A criança parece que adivinha quando ela tira um minuto de paz. Ela só queria um minuto de paz. É crime mãe descansar? É crime querer respirar sem choro? E quando sai do banheiro, se conseguir ficar até o fim, já está de novo com o filho no colo e o cliente no WhatsApp.

 

Nós todas conhecemos a mãe empreendedora.

 

Ela não tem certeza se vai ter renda no mês seguinte, mas ela sabe que as contas estarão lá na mesma. Ela não tem certeza se vai ter férias, mas a necessidade de descanso para não enlouquecer é ainda maior que para qualquer outra pessoa — afinal, ela trabalha empreendedoramente enquanto ainda cuida da criança.

 

Ela não tem certeza como vai sua previdência — e ela talvez esteja um pouco preocupada com as novas regras para aposentadoria, porque ela não sabe quanto tempo terá de ser empreendedora. Ela não tem chefe, mas também não tem estabilidade. Ela não pode negociar melhorias na condição do seu trabalho com ninguém, é ela por ela mesma. Não há greve nem sindicato que a represente. Se ao menos houvesse um sindicato de mães… Mas empreendedores não têm sindicatos para reivindicar direitos.

 

Nós todas conhecemos a mãe empreendedora.

 

A revista feminina, aquela que nos ensina a ser mulheres de sucesso, a limpar a casa e a enlouquecer um homem na cama, fala na mãe empreendedora várias vezes. Dedica edições seguidas. Ela é incrível, um tipo de super-herói: trabalha por cinco! Que mulher de aço! O jornal também disse que ela é mesmo assim: super mãe, super amante, super filha, super trabalhadora.

 

É tanta coisa que nem tem tempo de reparar na falta de direitos (como as férias, a instabilidade, o 13º ou a aposentadoria). O tempo dela é tão corrido que não tem tempo para lazer ou para descansar. Todos trabalham fora, ela trabalha em casa. A casa não é lugar de descanso, é lugar de trabalho. De tal forma que não sabe mais se está descansando ou trabalhando, se é ela ou se só vive para trabalhar.

Nós todas conhecemos a mãe empreendedora.

 

Ela aparece quando o desemprego cresce. Quando a discriminação por ser mulher que engravida, que tem filhos e família — numa sociedade que não assegura estruturas e condições para ter filhos e para cuidar da família e nem para planejar ou evitar gravidezes — acontece.

 

A mãe empreendedora então brota como uma leoa que salta de trás da moita no meio da noite, parece ameaçadora. Está, na verdade, desesperada. Mas faz do medo coragem, porque a alternativa é desamparo. É fome e falta de casa. Dinheiro não se sabe, mas os boletos chegam sempre no mesmo dia. E a criança precisa comer.

 

A mãe empreendedora, adorada pelas revistas e pelos donos do dinheiro que não contratam mulheres com plenos direitos — ou que pagam menos e despedem quando querem, é a mãe precarizada. É a mãe tirando água da pedra num momento de crise econômica e política em que as mulheres são deixadas às moscas.

 

A mãe empreendedora parece invejável, admirável — e, como mulher, ela é mesmo! Ação direta, ela por ela, plena na luta de sua sobrevivência — mas a mãe empreendedora é o que nós não devíamos romantizar. É o que nós não queremos que aconteça.

 

Não porque não queremos mulheres fazendo valer suas ideias, criando suas rendas nem que seja fora do mercado. Não porque queiramos mulheres meramente empregadas. Mas sim porque não queremos mulheres precárias.

 

Não queremos mulheres sem garantia de que poderão se alimentar e alimentar seus filhos no próximo mês. Não queremos mulheres sem tempo de descanso. Não queremos mulheres que escondem seu cansaço e esgotamento e saúde mental e física enfraquecida atrás da máscara empreendedora que, na verdade, é a mistura do trabalho doméstico, da maternidade sem condições e da falta de emprego enrolados numa bola de neve que a atropela.

 

Nós não queremos essas condições para as mulheres. Para nós.

 

Nós queremos as mães com direitos em dia. Com jornadas de trabalho dignas que nos permitam cuidar de nossas famílias e de nós, sem sacrificar a vida pelo trabalho.

 

Com pagamentos dignos para ter a qualidade de vida que todo ser humano deveria ter. Com aparatos sociais que a permitam autonomia sem ter, por isso, de optar entre comer e pagar a renda: creches e escolas públicas, saúde pública de qualidade, transporte público e acessibilidade universal nos seus espaços.

 

Não queremos ser guerreiras, queremos ser seres humanos com condições de vidas dignas. Não pessoas que vivem para trabalhar.

 

A vida é mais que pagar contas e limpar a casa. E a sociedade precisa ser reorganizada para isso.

 

Nós todas conhecemos a mãe empreendedora.

 

Ela é o reflexo de uma sociedade exploradora que esmaga as mulheres.

 

E ela está esgotada.

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  • Há tanto tempo que não lia um texto tão profundo na web. Eu sou mãe empreendedora! Obrigada pelo texto tão lúcido.

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