Precisamos parar de limitar o debate à má formação das instituições médicas e dizer as coisas como elas são.
Velhas desculpas para velhos problemas
“Burro velho não aprende línguas”, diz um ditado popular português. E quem de nós nunca ouviu uma justificação desse tipo ao denunciar ou reclamar de um comentário sexista, homofóbico ou racista vindo de alguém mais velho? Isso é especialmente verdade se o ‘alguém’ for um homem.
“Ele é de outra época”, “não adianta, não vai mudar depois de uma vida assim” e todas essas frases que são usadas para justificar preconceitos, insultos ou atitudes inaceitáveis porque o suposto agressor “aprendeu assim”. A ideia de imutabilidade me ultrapassa, é como se nosso cérebro passasse de um organismo vivo para uma pedra dura depois de determinada idade.
Repare: é a mesma justificativa para livros, filmes e músicas que refletem atitudes e ideias problemáticas que antes passariam tranquilamente porque a regra era o silêncio. “Tem que olhar o contexto”, disseram sobre o racismo de Monteiro Lobato. “Tem que separar o artista da obra”, dizem sobre o estupro deliberado de Bertolucci à atriz Maria Schneider para a cena “parecer realista” para a atriz sentir “a raiva e humilhação”.
Da mesma forma, quando falamos de violência obstétrica, é comum ouvir que o problema é a falta de formação atualizada. Que as instituições continuam a formar alunos e alunas preparados para intervirem no corpo feminino o máximo que conseguirem, ignorando as evidências científicas mais atualizadas e dando segmento ao continuum da violência a que mulheres são expostas desde a gestação até o pós-parto.
E, embora não tenha intenção nenhuma de isentar as instituições – que são indubitavelmente uma parte (grande) do problema – o meu ponto aqui é que essa é mais uma das muitas desculpas para invisibilizar a violência misógina contra mulheres e para desresponsabilizar agressores. Vou dizer o porquê.
Entendendo a violência obstétrica
Embora estejamos acostumados a pensar a violência quase exclusivamente como uma agressão física, ela pode se dar de muitas formas. Nem toda violência deixa marcas visíveis e físicas, mas não são menos danosas por isso.
Algumas podem deixar sequelas psicológicas e emocionais para o resto da vida, inclusive. Violência psicológica, verbal e sexual são alguns exemplos de outras formas de violência, inclusive já reconhecidas legalmente (como na Lei Maria da Penha).
Da mesma forma, também estamos acostumados a pensar o parto como um evento físico. Um bebê que está no útero fará sua passagem através do canal vaginal, ossos e músculos serão movimentados para abrir essa passagem, e o bebê nascerá. Mesmo a cesárea, sendo um evento cirúrgico, também é pensada dessa forma.
Contudo, nós não somos só “pele e osso”. Somos a mente, o que sentimentos, somos as relações sociais e a percepção da realidade à nossa volta. Aquela palavra difícil que alguns gostam de utilizar “biopsicossocial”, para dizer que somos o biológico, o psicológico e as relações sociais. Como diz o obstetra Dr. Herbert Jones, “o parto acontece entre as orelhas”. Ou seja, na nossa mente.
O parto é um processo complexo. Não é só o nascimento de um bebê, é um processo vivenciado pela mulher e o bebê, simultaneamente. Envolve o fisiológico, mas também o emocional e o psicológico. E isso tudo precisa ser levado em conta para conseguirmos definir a violência obstétrica como deve ser.
Uma cartilha da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, publicada em 2013, define a Violência Obstétrica como:
“A (…) apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres”.
No parto, os profissionais de saúde (não só os médicos, mas também enfermeiros, técnicos e assistentes, entre outros) usam os mais diversos recursos para manipular, punir e chantagear mulheres.
Desde amarrar a mulher à cama até chantagear com “você não quer que seu filho morra, não é?”, de abuso de medicação a cortes entre a vagina e o ânus para acelerar o nascimento sem qualquer evidência científica (famoso “pic” ou episiotomia) até o “ponto do marido” (suturar o corte além do necessário e recomendado, causando desconfortos e riscos para a mulher, para deixá-la “mais apertada” para o marido sentir mais prazer no sexo).
Ela pode acontecer antes (abuso de medicação, abuso verbal, chantagem emocional, etc.) ou após o nascimento (ponto do marido, negligência, falta de assistência, isolamento forçado, separação arbitrária da mãe e o bebê). E pode deixar marcas e consequências físicas visíveis (como o “ponto do marido”, incontinência urinária) ou não (como os traumas psicológicos, terrores noturnos, etc.).
A questão realmente importante aqui é: qual a raiz da violência obstétrica? O que a motiva? Em que se baseia? É só uma questão de “educação”?
O cenário da violência obstétrica
No Brasil, uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica no parto. Segundo a pesquisa Nascer no Brasil, quase metade das mães que têm seus filhos pelo SUS sofrem maus-tratos, sendo a incidência de violência obstétrica mais elevada em mulheres negras (66% das vítimas) e periféricas.
Apenas com estes três dados, já podemos ter uma ideia do tamanho da problemática. Aquilo que toda mulher descobre quando se vê grávida pela primeira vez: parir, no Brasil, é uma luta pela sobrevivência.
Sobretudo, também conseguimos perceber que muito mais que apenas uma questão de “educação”, a violência é ultrapassada por uma relação desigual de poder. O fato de 66% das vítimas de violência obstétrica no Brasil serem mulheres negras e pobres mostra que é mais que uma questão de prática ou de “ter aprendido assim”, mas que subjaz à violência uma linha de fundo cultural: de sexismo, de racismo e também de classismo
Violência obstétrica e racismo
Um exemplo muito evidente do fundo cultural e das questões de dominância no parto foi observado no estudo “A cor da dor“, realizado por pesquisadoras e pesquisadores da instituição Fiocruz, em 2017. O estudo revelou como a violência obstétrica é vivenciada de forma muito diferente entre mulheres brancas e negras. Veja só o que as nuances mostram.
Segundo o estudo, mulheres negras tinham menos chances, relativamente às mulheres brancas, de serem submetidas a uma cesárea sem indicação médica (o que parece positivo, mas já vamos escrutinar isso). Entretanto, tinham 50% mais chances de não receberam analgesia na realização de uma episiotomia, maior incidência da negação do direito ao acompanhante e piores indicadores de atenção pré-natal e pós-parto.
Para mulheres brancas, a violência obstétrica geralmente se caracteriza pelo excesso de intervenções. Elas estão mais sujeitas a serem submetidas a cesáreas sem indicação médica, sofrem mais intervenções dolorosas e estão mais sujeitas a abuso de medicação.
O que divide essas duas vivências completamente distintas de violências no parto? A resposta é racismo.
A construção da imagem da mulher branca e da mulher negra como opostos diretos é um resquício e herança que ainda produz consequências claras desde as colonizações. A mulher branca construída como “inocente”, “pura”, indefesa, frágil, a “mulher para casar” – que, na realidade, se traduz em: a mulher submissa para dominar e procriar – entra em choque com a imagem da mulher “mulata” e negra, construída como “hiperssexual”, “fogosa”, “resistente”, “parideira”.
Herança dos ideários racistas que fundamentavam as políticas exploradoras dos colonizadores, a mulher negra ainda hoje lida com as consequências da imagem construída para justificar a escravidão. A ideia de que negras aguentam mais peso, mais dor e são mais resistentes (que servia para justificar o trabalho escravo e a exploração) subjaz na forma como hoje essas mulheres vivenciam a violência obstétrica. Com menos analgesia e menos assistência.
Quanto às mulheres brancas, ter a imagem construída sobre um falso pedestal angelical não é igualmente positivo para a sua vivência no parto. É a imagem de mulher “indefesa”, “frágil” e de “donzela” que precisa ser resgatada pelo príncipe corajoso é a linha de fundo das múltiplas intervenções e cesáreas sem indicação para “salvar” essa mulher incapaz de parir o filho que ela mesma gestou.
Embora diametralmente opostas quando falamos de racismo, o que une essa experiência universalizada de violência obstétrica é a misoginia.
“Na hora de fazer não gritou”
“Fica quieta senão vou te deixar aqui sozinha”
“Ano que vem você tá aqui de novo”
“Quer que seu filho morra?”
“Na hora de virar os olhinhos tava bom, né?”
“Cale a boca, quem manda no procedimento sou eu”
Essas são algumas das frases que mulheres vítimas de violência obstétrica relataram ouvir dos profissionais no momento do parto. O que há em comum em todas elas é muito mais que uma falta de formação adequada, mas um evidente desprezo pelas mulheres. Chamamos a isso misoginia.
Violência obstétrica é um crime de gênero
Ouvimos tanto que o abuso, a má assistência e os maus tratos no parto (ou seja, a violência obstétrica) são consequências do despreparo e de uma formação médica desatualizada que quase se invisibiliza o fato de que a violência obstétrica é um crime de gênero.
Dizer que é um crime de gênero é dizer que acontece porque a vítima é mulher e existem ideias (culturais, sociais, políticas, religiosas, etc, etc) pré-concebidas sobre o papel, as capacidades ou incapacidades e valores como que inerentes ao ser mulher.
Repare que as frases ditas às mulheres no contexto da violência obstétrica geralmente têm uma conotação de punição da mulher por exercer a sua sexualidade (“na hora de fazer não gritou”, “na hora de virar os olhinhos tava bom, né?”). A ideia subjacente é que o parto é um suplício, um castigo ou uma penitência dolorosa merecida por fazer sexo.
É importante continuarmos insistindo nesse ponto de que a violência obstétrica é uma violência de gênero e não uma mera questão de despreparo, pois é isso que obriga o Estado e as instituições públicas a reconhecerem a própria responsabilidade em fazer mais para mudar o machismo e o sexismo que cria e mantém as condições na sociedade para que a violência obstétrica que exista. Porque é a misoginia e o machismo que fundamentam a violência obstétrica.
E que condições são essas? A dos papeis de gênero, dos estereótipos sexuais de mulheres como cuidadoras, maternais, santas e putas, naturalmente dóceis e naturalmente incapazes ou inferiores aos homens. A mulher como o “sexo frágil”, o segundo sexo, como postulou a feminista Simone de Beauvoir.
Como escreveu a Dra. Jessica Taylor, psicóloga e ativista feminista, “estamos dando mais uma desculpa para eles [os agressores]. Nós nunca causaremos mudanças sociais se continuarmos a despejar, aos pés de homens violentos, desculpas para justificar a violência masculina.”