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Ou como todos esperam que mulheres se anulem de um jeito ou de outro.

saúde mental materna

Ou como todos esperam que mulheres se anulem de um jeito ou de outro.

“Acho um absurdo essas mulheres que querem ter filho em plena pandemia”, li várias vezes em publicações e comentários nas redes sociais. A opinião geralmente vem acompanhada do veredicto “É puro egoísmo“.

 

Com a pandemia, voltaram à moda todas as teorias malthusianas de como as pessoas precisam parar de se reproduzir porque isso está acabando com o planeta. Se tirarmos de cima todo o pó e firulas do discurso, o que nos sobra é o de sempre: a culpa é das mulheres. Afinal, quem é que põe filho no mundo, não é mesmo?

 

A culpa é das mulheres egoístas que não param de ter filhos. Não pensam no planeta, na fome, na escassez de recursos hídricos, nas tartarugas mortas com canudinhos de plástico, na seca do Nordeste, no degelo polar e na alta do dólar. O mundo acabando e essas bruxas egoístas maquiavélicas continuam a por filhos no mundo!

 

Não existem palavras suficientes para descrever a dimensão do egoísmo. São más por não pensarem nos filhos, que não pediram para nascer e sofrerão uma vida de privações num cenário distópico de Mad Max quando tiverem 18 anos. São más por não pensarem nas pessoas que morrem de coronavírus. São más por não pensarem no mundo, na Terra, na Água, no Vento, no Fogo e, pela junção dos poderes, no Capitão Planeta.

 

Só pensam em si mesmas e em limpar bundas de neném e pagar fraldas, essas malditas egoístas!

 

Esse discurso tem várias versões. Uma delas é da falta de recursos na Terra porque há pessoas a mais e as mulheres não param de ter filhos. A outra, um pouco mais específica, é que a falta de recursos só é um problema porque algumas mulheres têm filhos demais e isso faz com que outras não possam ter. Ouvi uma vez: “eu agora não posso ter filhos porque tem mulheres na África que têm seis, sete ou dez filhos na vida? Isso não é justo!”.

 

Enfim, as egoístas. Não pensam no planeta, não pensam nas mulheres em países desenvolvidos, não pensam em ninguém além de si mesmas.

 

Mas também existem as outras, egoístas por uma razão tão má ou pior: as que não querem ter filhos.

 

Poderá haver egoísmo maior do que uma mulher que não se presta sequer a por uma criança no mundo simplesmente para focar na sua carreira ou em si mesma? É, certamente, alguém que só quer viver em balada, só pensa em dinheiro e viajar, acha que a vida é um conto de fadas e que ela jamais ficará velha e nunca precisará ser cuidada por ninguém. Vai ser a louca dos gatos, com certeza. Haverá maior umbiguismo?

 

Afinal, a função última e a utilidade única de uma mulher neste planeta é exatamente esta: constituir família.

 

Uma mulher sem filhos é uma desgraçada infeliz. Mal amada, mal comida, quiçá louca. Louca dos gatos, mãe de pet, de planta, que não consegue segurar um homem (ah, tem também essas outras egoístas: que põe filho no mundo *só* para segurar homem!).

 

Oh, mas espere! Acabei de me lembrar que, de fato, talvez existam egoístas piores… As que não querem ter mais de um filho e condenam uma criança a uma vida solitária neste planeta cruel.

 

Haverá egoísmo maior? Por culpa delas, as egoístas do filho único, uma criança crescerá sozinha e sem irmãos e, consequentemente, as pessoas e o planeta terão de lidar com mais um insuportável e mimado filho único que não sabe dividir, não pensa nos outros e etc, etc, etc.

 

Já acompanhei e já participei dessas conversas, pessoalmente, em diversas situações. E todas elas, curiosamente, tem um fim engraçado. Quando confrontadas com argumentos de que a maior parte das mulheres no Brasil não tem acesso ao planejamento familiar, a contraceptivos, a educação sexual, além dos dados esmagadores de violência sexual e gravidez na adolescência, a maioria simplesmente diz “mas não estou falando dessas, estou falando daquelas que têm condições, informações e sabem sim o que estão fazendo e escolhem ter filhos na mesma. Só pode ser egoísmo”.

 

Perceba, a mulher egoísta que tem filhos sem pensar no planeta, na sociedade e no próprio filho é… um espantalho. Ela é uma persona criada para ser o bode-expiatório dos males do mundo.

Se ela não é parte da maioria que não tem acesso ao mínimo necessário para ter autonomia reprodutiva, para decidir conscientemente e de forma planejada ser mãe ou não, então quem ela é? Estamos falando daquelas que são parte do 1% mais rico do mundo? Bem, os mais ricos certamente estão acabando com o mundo, mas não porque tem um filho cada. E, certamente, não exclusivamente as mulheres.

 

O importante, afinal, é ter uma mulher para culpar e para canalizar a dessatisfação de todos. Porque o contrário seria duro demais de processar: pensar racionalmente sobre quem é o culpado pelo “fim do mundo” exigiria analisar as organizações e instituições, as grandes corporações que destroem o meio ambiente e acabam com o alimento, teríamos de apontar para estruturas que não são tão fáceis de combater. E boa parte dessas pessoas teria simplesmente de assumir que não estão fazendo a sua parte nessa luta.

 

É mais fácil e tangível culpar mães. Mulheres.

 

Por ter, por não ter, por não querer ter, por só ter um… Não há escapatória.

 

Nos anos 80, uma autora feminista analisou a figura da mãe nos contos de fada e apontou que elas geralmente aparecem como figuras de terror. Por exemplo, a madrasta de Branca de Neve tentou envenená-la e a matou. A madrasta de Cinderela tentou cortar os pés das filhas biológicas para casá-las e tratava Cinderela como escrava. A mãe de Rapunzel a trocou por um vegetal e sua bruxa-madrasta a trancou numa torre. A mãe de João e Maria abandonou os irmãos no bosque.

 

As mães são horríveis. E quando as mulheres ousam ser boas (e ser “boa” geralmente significa ser passiva, submissa e calada… na versão brasileira, “bela, recatada e do lar”), o que aprendemos é que elas morrem. Como a mãe biológica de Cinderela, ou a de Branca de Neve ou como a própria Branca de Neve. Como diz a autora Andrea Dworkin:

“Quando ela é boa, ela logo morre. (…) Quando ela é má, ela vive; ou quando ela vive, ela é má. Ela tem uma função real: a maternidade. Nessa função, por ser ativa, ela é caracterizada por uma malícia avassaladora, devoradora de ganância e avareza incontrolável.”

 

A autora conclui, na sua análise dos Contos de Fadas, que “Existem duas definições de mulher. Existe a boa mulher. Ela é uma vítima. E existe a mulher má. Ela deve ser destruída. A boa mulher deve ser possuída. A mulher má deve ser morta ou punida. Ambas devem ser anuladas.”.

 

Parece que engolimos bem a lição. A conclusão é que mulheres são más e responsáveis pela fonte de terror no mundo. Mulheres boas são mortas (ou, quando vivas, são quase como mortas-vivas, passivas e submissas).

 

O debate e a mecânica estão tão viciados, que não há espaço sequer para discutirmos sobre em que condições queremos ter filhos, se queremos ter filhos ou não, se ter filho é bom ou não, se podemos ou não gostar da maternidade.

 

Ou estamos na defensiva daqueles que tentam pintar a maternidade margarina para nos manter sobrecarregadas (como a mãe empreendedora ou as “pães“), ou tentamos nos defender da maternidade compulsória e a imposição social de nos tentar enfiar maternidade goela abaixo a qualquer custo ou estamos… tentando culpar mulheres por ter filhos.

 

Deixe pra lá isso de discutir sobre planejamento familiar, investimento em educação sexual e amplo acesso a anticoncepcionais. Deixe pra lá essa conversa sobre aborto seguro e gratuito, sobre fome e miséria, sobre agronegócio e pobreza, sobre falta de moradia e de renda. E, claro, deixe pra lá isso de “quem é que engravidou essa mulher?”, os homens não são seres responsabilizáveis.

 

Afinal, todos já estão acostumados a culpar mulheres. Mais uma culpa, menos uma, qual a diferença? Em time que está ganhando não se mexe.

 

E segue o baile das egoístas.

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