O Pedro chegou como um furacão… banhado pelas águas mornas do chuveiro, no aconchego de sua casa, num lindo parto domiciliar planejado.
Fernanda me procurou no face quando sua gravidez já estava a termo. Disse-me que ela e o companheiro estavam com medo de estarem sozinhos no parto e queriam a ajuda de uma doula.
Seria um parto domiciliar planejado, embora, quando Fernanda fora fazer os seus exames, alguns médicos tivessem a amedrontado com dez tipos diferentes de medo para, enfim, sugerirem uma cesárea. Diziam que o bebê apresentava circular de cordão, que ela era velha, que podia entrar em sofrimento (a bola de cristal está em alta!)… O que eles não sabiam é que Fernanda era acompanhada por uma equipe de Parto Domiciliar multidisciplinar, com profissionais experientes e capacitadas, paralelamente.
Quanto a mim, no meu lugar de doula, estava um bocado apreensiva de aceitar acompanhar o parto, pois estava muito perto da Data Prevista de Parto de outra gestante que já estava acompanhando antes. Marcamos encontro, desmarcamos; marcamos o segundo, desmarcamos. No terceiro, quase não dava certo, desencontramos e acabaram vindo à minha casa, depois do trabalho, numa visita corrida e sem tempo.
Conversamos muito superficialmente naquele primeiro encontro. Era pra gente se conhecer pessoalmente, para que pudesse explicar como trabalho e podermos, depois desse cara-a-cara, marcar uma conversa a sério. Marcamos para dali a três dias, numa segunda-feira.
Mas o Pedro tinha outros planos para o domingo.
Domingo de manhã, Fernanda me avisa: estou em trabalho de parto. Nem pensei duas vezes: me arrumei, peguei as coisas e fui. Um dia lindíssimo de sol, quente e iluminado. Cheguei à casa deles às 8:30.
Fernanda já estava perto dos 5cm de dilatação, reclamava de dor embaixo do chuveiro. A obstetriz chegara pouco antes de mim e já estava enchendo a piscina com a ajuda do pai.
Fernanda passou todo o trabalho de parto andando de um lado pro outro. Não ficava confortável em nenhuma posição, sendo o chuveiro seu único aliado no alívio das dores.
“Não acho posição.”, desabafou ela, com uma expressão um pouco desesperada. “Nada está bom, Aline!”.
Eu sabia o que era aquilo. Estava nos olhos dela. Era medo.
“Fernanda”, disse eu, “não lute contra a contração. Deixa vir. Respira fundo e vai. Você está indo bem”, lembrei.
Mas ela definitivamente tinha algum receio, algum medo. Algo atrapalhava a sua entrega. Algo não a deixava desconectar de todas as preocupações laterais ao seu parto. Fernanda não admitiu até os últimos segundos, quando finalmente gritou com todas as forças: “eu tô com meeeedo!!”.
Mesmo na reta afinal, não havia muita introspecção. Ela tentava controlar o parto, manter os gritos sob controle, não incomodar. Estava preocupada com os vizinhos, com a falta de água do bairro que limitava… Não conseguia focar em si mesma e no seu bebê, receava que tudo escapasse às suas mãos.
Eu dizia: “Deixa ir. Esquece eles, eles vão saber depois, nem devem estar ouvindo. Confia no seu corpo. Chama o Pedro! Ele está nessa com você!”
E ela chamava. Chorava. Urrava como uma ursa, uma leoa… uma mamífera. Parto é animal, sim. Somos animais. Somos mamíferas. E Fernanda urrava como uma mamífera!
Ela achava que aquilo era fraqueza, mas era o contrário. Era a força do seu corpo, sabíamos e víamos isso! Vinha a contração e com ela um urro e um apelo a Deus!
Quando começou a dizer “Eu não consigo, não aguento mais”, sabíamos que a hora se aproximava. Ela sabia também. Vinicius, o pai, sabia também. Nós a lembramos: “Lembra disso? Nós falamos disso! Significa que está acabando!”
Ela acenava com a cabeça. Sabia que era verdade, mas a reta final de um parto não é lógica, não é raciocínio. É hormônio, subconsciente, é animalidade. Então seu consciente chorava: “eu não consigo!” E seu subconsciente urrava para passar por tudo aquilo.
Na verdade, ela quase não usou a banheira. Acho que já tinha escolhido o seu cantinho. O lugar mesmo era o banheiro. O chuveiro. A água e a força misturadas com a falta de controle dela sobre os eventos que não podem ser controlados. Enquanto isso, ao fundo, tocava um mantra que ela me pedira para por.
Fernanda chorava, urrava, pedia água o tempo todo! Pedia quente, pedia gelada, alternava, queria tudo. A dualidade de quem está passando para o outro lado, a partolândia, mas insiste em se apegar aqui, com medo, ao material. Era o controle e o medo, eu sabia. A preocupação. Mas nem isso poderia parar aquele evento poderoso que já estava acontecendo: bebês nascem de todo jeito e o corpo seguiria seu curso, como tem que ser!
Coloquei o banco de parto no banheiro. Ela não quis. Mas logo depois veio aquela voz de mulher que está parindo e ordenou: “me dá o banco”. Eu soube que era a hora, porque eu me reconheci naquela ordem tão decidida.
É incrível, mas é exatamente assim. Enquanto a última hora parece fraqueza, briga com o cansaço e esgotamento, quando a hora chega, a mulher se transforma. Seu corpo dita as regras. E eu, que não sou besta, segui. Dei o banco para ela. Pedro ia nascer. Tinha certeza.
E assim foi.
Ela berrou e chamou. O pai veio buscar a equipe, mas elas duvidavam. Achavam que ainda não seria agora. Tinham se enganado com a linha púrpura. Mas era.
Urros, força, contração. E lá veio Pedro, 11:50 da manhã, num parto rapidíssimo! Quando saiu a cabeça, o corpo veio todo de uma vez, numa baita surpresa! Três minutos depois sai a placenta, espontaneamente, e ainda pulsa viva e audaciosa por um minuto inteiro!
Pedro foi recebido e entregue à mãe que chorava, já sem lágrimas, e sorria. A dualidade tão característica de um momento tão poderoso.
Parto lindo, mulher forte que brigou contra todas as possibilidades de uma cesárea “está velha, acima do peso, pressão alta (subiu duas vezes depois de entrar a termo), circular de cordão”. De fato, o bebê nasceu com duas circulares bem rentes. APGAR 9/10, mais um dia difícil para os cesaristas.
Nasceu Pedro, nasceu a mãe Fernanda e nasceu o pai Vinicius. Em casa, amado, respeitado, sem procedimentos de rotina desnecessários.
Natureza poderosa não se controla.
Parto é entrega.