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Clara nasceu em um poético e tranquilo parto na água, na sua casa e recebida pelas mãos de sua mãe, o abraço de seu pai e o choro emocionado de seu irmão mais velho.

Esse é um relato especial de um momento mais que especial. Andreia me procurou, contou que estava grávida e precisava de uma doula. Ela fazia questão que fosse eu a sua doula e queria um parto domiciliar.

Eu já a conheci há algum tempo. Conhecemo-nos pelo Facebook, através do post machista de um amigo em comum, no qual ambas compramos a briga por respeito. Embora não a conhecesse pessoalmente, existia entre nós um sentimento recíproco de proximidade e de amizade, de respeito e admiração. Tínhamos gostos parecidos! Duas feministas daquelas, pro azar do nosso amigo em comum.

Numa virada de ano, vi sua publicação de que estava esperando um bebê.

Ela então veio conversar comigo, disse que acompanhava minhas publicações sobre parto humanizado e queria ter um parto respeitoso e domiciliar. Que nunca antes tinha pensado nisso, mas minhas publicações fizeram com que percebesse a diferença e a importância de ter suas decisões e seu corpo respeitado naquele momento.

“Continue gritando para mais mulheres ouvirem!”, ela me disse uma vez. Ela estava decidida a ter um parto domiciliar e me pediu para ser sua doula, o que aceitei com muita alegria, é claro. Ajudei-a a encontrar sua equipe de parto domiciliar (aliás, a mesma equipe que tinha acompanhado o meu próprio parto em casa) e ela foi lendo cada vez mais sobre, tornando-se uma militante e ativista pela humanização, como era inevitável.

Andréia foi uma mulher que realmente se transformou no caminho! É importante dizer que ela já era mãe de um menino adorável de 7 anos de idade, um pequeno gênio devorador de livros. E Andreia tinha passado, em seu primeiro parto, por uma série de violências obstétricas, físicas e emocionais, que ela, até então, não sabia reconhecer e nomear, por mais que doessem e incomodassem.

Seu primeiro parto foi uma cesárea desnecessária e não-desejada, conseguida através da manipulação mais perniciosa que médicos cesaristas fazem: “está passando da hora, você não quer que seu filho morra, não é?”. Com direito a episiotomia sem consentimento, soro e ocitocina sem informação, pressão no trabalho de parto, manipulação e chantagem emocional… Tudo que a má-cartilha tem para oferecer.

Era, para ela, um processo de cura conseguir entender, estudar e planejar um parto segundo a sua vontade, suas escolhas informadas e no tempo dela e do seu bebê. E assim foi.

Acompanhei durante a gestação, que foi muito tranquila sempre. Na reta final, entretanto, havia uma atmosfera de insegurança e ansiedade que pairava sobre nós. Andreia chegava às 41 semanas de gestação e Clara não dava qualquer sinal de querer sair do útero quentinho de sua mãe.

A equipe de parto domiciliar avisou, então, que não poderia atendar caso ultrapasse as 42 semanas. A obstetriz backup também não. E o plano B era SUS. E, no SUS, depois de 41 semanas, a cesárea é quase sempre uma certeza incontornável. Andreia não queria outra cesárea.

Nós, entretanto, já esperávamos uma gravidez prolongada, porque tinha acontecido exatamente assim na sua primeira vez! Sua primeira gravidez, há sete anos atrás, chegara às 42 semanas. Mas foi roubada! Caiu na cesárea no dia que seu trabalho de parto estava começando, por um servidor do hospital que, ao ouvir a idade gestacional, sentenciara – sem qualquer teste – que o bebê estava em sofrimento fetal. Cesárea. Ir para o SUS, com mais de 40 semanas de gestação e tendo uma cesárea anterior, eu sabia o que viria… Mas dessa vez seria diferente!

Eu mesma, enquanto sua doula, não imaginava Andreia parindo em outro lugar que não em casa. Andréia não se via parindo em outro lugar que não em casa. Mesmo passando de 41 semanas, ela me dizia se sentir bem e sabia que a Clara estava bem.

Falou comigo num sábado, preocupada porque uma das parteiras da equipe viajaria na segunda-feira e a outra viajaria na quarta. Na sexta-feira ela completaria 42 semanas e estaria sem ninguém que a pudesse atender, mesmo estando saudável, numa gestação perfeita e sentindo que sua bebê estava bem.

A frustração era grande, falavam da possibilidade de induzir o parto por deslocamento de membrana na segunda-feira com um médico respeitado e humanizado da região, que dizia não ter horário pra ela.

Então marcamos uma despedida da barriga no domingo. Um chá de bênçãos ateu (hahah!) para relaxá-la e tentar, assim, conseguir desencadear o parto de maneira natural, não invasiva e mais calma. Com água quente, chá e muito amor!

Talvez a simples promessa de uma despedida de barriga assim, calma e cheia de apoios, tenha a feito relaxar o suficiente para o processo fluir… Talvez já estivesse mesmo na hora e Clarinha só estava à espera, pregando em nós uma peça… Às 5h da manhã desse mesmo domingo, recebi uma mensagem da irmã de Andreia dizendo: “venham todos, a Andreia está em trabalho de parto”.

Bebês…! Como amo bebês subversivos! Nossa pequena feminista sabia seu tempo de nascer e não ia se deixar ditar por ninguém, nem doula nem médico!

Na bem da verdade, só vi a mensagem às 8h, porque estava sem celular. Ela me disse que as contrações estavam de 3 em 3 minutos e, como moro relativamente longe, tomei meu café da manhã às pressas, peguei minhas coisas e fui para a casa da minha doulanda e amiga, prontas para receber a Clara nesse mundo!

Quando cheguei, a parteira Maria José já estava lá. Tudo tranquilo. Ainda não era trabalho de parto ativo. Estava em fase latente, com contrações espaçadas e não ritmadas.

A mãe e a irmã também estavam, além do marido e o filho mais velho. Ficamos conversando e rindo, assistindo séries e jogando conversa fora, como um dia completamente normal. Andréia estava bem, agia normalmente, se calava durante as contrações e só.

Marcamos as contrações durante um tempo, mas percebendo que não estavam ritmadas, deixamos de lado e resolvemos esperar. Até assistimos um documentário, ouvimos música, almoçamos.

O plano de fundo do nosso cenário, na sala da casa de Andreia, fazia jus àquela grande e forte mulher que aceitava e se entregava ao seu trabalho de parto de corpo e alma. Um mural que ela mesma pintara, com uma citação de Frida Kahlo: “Pés, para quê os quero, se tenho asas para voar…?”.

As contrações começaram a ficar mais fortes, mais ainda sem ritmo. Percebia pelo rosto dela que doíam um pouco mais, mas Andreia continuava muito tranquila. Encarava aquilo pelo que de fato era: um evento natural que seu corpo passava e que outras milhões de mulheres já tinham passado antes dela. E só.

Às 13h, as contrações vinham mais fortes, às 13:30 a bolsa amniótica rompeu. Aí sim, o trabalho de parto engrenou e começou realmente a dar trabalho. Ela abraçou o marido, que estivera conosco o tempo todo, e, pela expressão dela e pelas suas maneiras, eu soube que aquele parto seria muito intenso! Muito mesmo!

O parto é o fecho do ciclo sexual da mulher, é parte da sua vida sexual, tão ou mais íntimo que o próprio sexo. Daí a minha resistência quando tantas pessoas pedem para assistir o parto de alguém sem ser convidado. Afinal, isso pode inibir a mulher (algo que deifnitivamente não ajuda).

O momento e o clima todo era tão intenso, tão fluido, forte e íntimo, que mais de uma vez me perguntei se ela teria um parto orgásmico. Juro!

Assim que a bolsa rompeu, ela chamou o marido e foram ambos para debaixo do chuveiro, o melhor amigo de toda mulher em trabalho de parto! Levei a bola de ioga e Andreia ficou lá, concentradíssima nas suas contrações, sentada na bola. Cobri-a com uma toalha quando ela disse sentir frio. A parteira Maria José auscultou a bebê. Tudo certo. Tudo lindo.

Andreia estava tão bem preparada para aquilo, tão sólida e inabalável na sua escolha, na sua decisão, no seu corpo e na sua capacidade, que era notório como lidava super bem com a dor. Não reclamava, não lutava contra ela, apenas deixava vir e se concentrava. Como a onda: encara, mergulha e passa. E, depois, já estava pronta para a próxima!

Percebemos que a reta final se aproximava, então começamos a encher a piscina e essa foi a tarefa mais difícil da tarde! Exatamente naquele dia, naquele momento, um problema de fornecimento de água nos obrigou a encher a enorme piscina aos baldes, esquentando água no fogão, o que tornava muito mais difícil manter a temperatura.

Aproveitei os períodos introspectivos de Andreia, vendo que seu trabalho de parto agora estava bem avançado, e fui arrumar a cama para que ela pudesse deitar depois. No quarto, o pequeno “santuário” que tinha sugerido que ela preparasse no dia anterior: havia fotos de momentos importantes, coisas da bebê que chegava, almofadas com palavras bonitas, caneca de mãe, o penduricalho da porta com o nome e uma bonequinha… Maravilhoso!

Andreia
Sam segurando a mão de Andreia durante uma contração.

Quando Andreia entrou na piscina, a água ainda não estava quente. Ela não reclamou e nós persistíamos esquentando no fogão. Ela ficava lá, as contrações já bem fortes, gritava, gemia, virava os olhos; o marido ao lado, sentado no sofá, segurando sua mão, secando seu rosto, dando beijos. Na piscina, Andreia entrou e ficou. Não saiu mais. Clarinha nasceria ali, na água. Eu, sentada ao seu lado, jogava água na barriga, no colo, passava a mão no rosto e lembrava sempre “você está indo bem”.

Em nenhum momento Andreia pediu ou cogitou uma cesárea. Em nenhum momento pediu analgesia. Em nenhum momento pediu ocitocina. Nenhum toque também, totalmente hands off e respeitoso! A parteira, de tempos em tempos, acompanhava a bebê. Tudo certo, vamos a isso!

Eu dava-lhe água, barrinhas de cereais, secava seu rosto. Andreia começava a ficar muito cansada com tantas contrações. Começou a perguntar se estava mesmo tudo bem e nós a tranquilizávamos: sim, está indo bem! Seus pés já estavam esbranquiçados e enrugados da água… ela começava a reclamar da posição. Sugeri que o marido entrasse na banheira também e, juntos, acharam uma posição confortável para ambos.

Perto das 16h, Andréia entrou no expulsivo. Cerrava os dentes, vocalizava e grudava na borda da piscina. Conseguíamos ver a bebê já bem baixo, pronta pra sair. O marido nos interrogava com os olhos, nosso olhar confirmava: está tudo certo! Continua.

Por três vezes a bebê coroou e voltou! Vimos a bossa, mas não saiu a cabeça. Andreia gritava, parecia exausta. Começou a me perguntar se estava acontecendo alguma coisa. Começou a dizer que achava que estava cansada demais e não conseguia fazer a força necessária, perguntava porque estava demorando. Eram perguntas que ela sabia a resposta, mas o cansaço martelava e fazia com que se questionasse.

Sentada junto à borda da piscina, eu disse: “não está demorando, é o tempo dela, o tempo que ela precisa, ela está pronta para nascer”. Na quarta vez, a cabeça saiu! Uns longos minutos sem contração e ela começou a perguntar novamente: está tudo bem? Por que não vem a contração? E se eu não conseguir fazer força? Respondi logo “vai vir, fica calma, seu corpo instintivamente faz força; a Clara já está quase nos seus braços, confia nela!”.

Mais uma contração e lá vem a pequena-grande Clarinha, às 17:38, nas águas mornas da piscina, com seu lindo cordão umbilical perolado e azul ainda pulsando, como se fosse um colar mágico.

A parteira pegou e entregou para a mãe, que abraçou junto do pai, todos completamente extasiados. O rosto dela dizia tudo: choro e sorriso, uma alegria que não se descreve. A avó correu e chamou o irmão mais velho, que estava no quarto. Ele veio correndo, parou por um segundo, incrédulo, do meu lado: “nasceu?”. Colocou as duas mãos no rosto, com um sorriso largo, olhando a piscina. Ficou meio aturdido, correu pro lado do pai e, abraçando ambos, começou a chorar. Chorei junto!

É essa a cena linda que vai ficar gravada na minha memória quando pensar na Clarinha e na Andreia! Ela, com Clara nos braços, chorando e rindo; Alexandre, o marido, com um braço passado no ombro da companheira e o outro abraçando a cintura do filho, com o rosto enterrado na sua barriga, também chorando. Gabriel, o irmão mais velho de sete anos, grudado no pai, olhando, meio chorando, meio sorrindo, emocionado. Olhei pro lado e vi a irmã dela, Juliana, que tivera um parto normal hospitalar traumático (mesmo) e uma cesárea, chorando aos montes enquanto filmava o momento.

Lindo! VBAC (parto vaginal após cesárea) em casa, com 41 semanas e 5 dias. Sem toque, sem analgesia, sem ocitocina, sem soro, no tempo do bebê e da mamãe, respeitoso, cheio de amor no seio de uma família maravilhosa! Clarinha veio com 50cm, 3840kg, lindos olhos escuros e um corpinho rechonchudo encantador!

E eu? Depois de chorar o que tinha pra chorar, tirar inúmeras fotos e aprender a arte da paciência, fui para casa com meu menino e meu companheiro, que foram me buscar. Foi até difícil dormir com o coração tão transbordante e agitado. E aquele sentimento que às vezes preenche a alma: gratidão!

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