“Olha que grandão, esse vai ser pintudo. Vai pegar geral”, diz um tio se referindo ao órgão genital de um recém-nascido.
“Hmmm já tá nascendo pêlo na periquita”, diz uma tia à menina de apenas 11 anos, que se recolhe envergonhada. “Adivinha quem virou mocinha?”, anuncia uma mulher adulta, comunicando para toda a família ou para terceiros um acontecimento íntimo e particular de uma menina em desenvolvimento.
“Pode se trocar na minha frente, acha que eu nunca vi ninguém pelado não, é? Eu também tenho peito/pinto/bunda/etc”, diz um adulto qualquer sobre uma criança que começa a ganhar consciência sobre o seu corpo não ser público e não se sente à vontade em trocar de roupas ou estar nua à frente de adultos, sejam eles estranhos ou familiares.
A verdade é que crianças são tratadas, desde o momento em que nascem, como propriedade pública. Como se tudo em seus pequenos corpos pertencesse a todos e qualquer um, e como se sua vergonha e seu anseio por privacidade fosse injustificável ou mesmo risível.
Terão as crianças direito à privacidade?
O que significa falar em “privacidade”?
É importante pensar qual o impacto dessa ideia de privacidade nas nossas vidas. Segundo o dicionário, privacidade significa “Condição do que é privado, pessoal ou íntimo; vida privada.”. A Wikipédia estende dá um complemento interessante: “pode ser também entendida como a vontade de controlar a exposição e a disponibilidade de informações acerca de si mesmo, o que é chamado de regulação dos limites”.
Se pensarmos bem, a privacidade é uma ideia abstrata, sim, mas essencial para estabelecermos direitos humanos básicos. Especialmente, para separarmos a vida coletiva da vida íntima. Aliás, não é por menos que ela está na própria Constituição Brasileira (artigo 5º), como também na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 12), entre outros acordos internacionais sobre direito.
Por exemplo, sem a noção de privacidade, não conseguiríamos definir hoje como crime a difusão de imagens e vídeos íntimos sem consentimento. Hoje, quando tudo é muito digital e a internet é esse monstro difícil de controlar, dispomos nossos dados (fotos, endereço, documentos, tudo) em redes que pertencem a empresas privadas. A noção de privacidade, aqui, é essencial para defender nossas informações e direitos, para que não seja tudo usado ao bel prazer das empresas privadas.
Já ouviram falar do caso Cambridge Analytica? Os estrategistas da campanha política de Donald Trump utilizaram dados das redes sociais para manipular a opinião pública através de anúncios que incitavam a opinião das pessoas, baseados no que elas compartilhavam nas redes. Isso foi decisivo para que Trump vencesse as eleições presidenciais nos Estados Unidos.
Isso é a violação da privacidade a um nível muito superior, mas que definitivamente tem um efeito prático e enorme nas vidas cotidianas das pessoas.
Então, o que as crianças têm a ver com isso? Como podemos falar de privacidade das crianças? Qual é o ponto de preocupação?
Privacidade das crianças: direito ao próprio corpo, à própria imagem e à intimidade
Domingo à tarde. Estou com meu filho, de 4 anos, abrigada à porta de um centro comercial, pois tínhamos sido pegos de surpresa pela chuva enquanto passeávamos. Enquanto aguardávamos a chuva passar, um idoso se aproximou e começou a puxar conversa. Em dada altura, do nada, sem que estivéssemos à espera, o senhor diz qualquer coisa incompreensível e toca no pênis do meu filho, como se aquilo não fosse nada.
Aquilo me deixou passada. Especialmente, sendo eu própria sobrevivente de abuso sexual, tendo sofrido assédio na mão de homens adultos tantas vezes, não via aquilo como algo pequeno. E não era. Fiquei de tal forma consternada que não tive sequer capacidade de reagir, de xingar, de questioná-lo. Apenas peguei meu filho no colo e saí dali.
Como socialmente existe uma ideia generalizada de que apenas adultos são pessoas e que crianças são seres sem vida própria e sem direito à privacidade, que um estranho se sinta à vontade para tocar a parte íntima de uma criança em público é só óbvio. Afinal, qual o mal? Todos fazem isso! É só uma criança! Não é tudo isso.
Uma vez que o conceito de privacidade, autonomia e vida própria não parece se estender às crianças, essa invasão aos seus corpos, sua intimidade e suas vidas, em geral, pode acontecer e acontece das mais variadas formas. Desde casos pouco graves (como ler o diário das crianças) a casos gravíssimos (como o assédio e o abuso).
Crianças ainda estão literalmente desenvolvendo determinadas áreas do cérebro que são essenciais para a tomada de decisões com clareza. Elas ainda não compreendem completamente as regras sociais, o certo e o errado, a noção de consequências. Basta lembrar que crianças de 8 anos ainda acreditam em Papai Noel ou Fada dos Dentes. Se a própria fronteira entre realidade e fantasia não é clara, quem dirá a noção do certo ou errado ou do que é ou não é aceitável socialmente – e como pedir ajuda.
É por isso – além da menor capacidade física e motora – que crianças são um grupo vulnerável na sociedade e que carece de proteção especial e específica.
Para protegermos crianças de abuso, precisamos ensiná-las sobre consentimento e também sobre barreiras. Sobre onde começa o seu corpo e onde começa o corpo do outro. Mas é impossível ensinar isso se constantemente reforçamos a mensagem de que seus corpos são públicos. Que pertencem aos pais, aos familiares, ao círculo mais amplo, à escola e até a estranhos.
Para conseguirmos educar crianças mental e psicologicamente saudáveis, que se sintam verdadeiramente amadas, ouvidas e apoiadas, e não crianças que perpetuem ciclos de violência, precisamos ensiná-las sobre o direito à privacidade, o direito a dizer não, o direito à intimidade. Precisamos ensinar que existe o coletivo, mas que ela, enquanto indivíduo, também importa.
É impossível fazer isso se estamos constantemente dizendo às crianças “nada nessa casa é seu” (ou seja, você não pertence e não tem um espaço aqui), “criança não tem que querer”, “aqui mando eu”, enquanto divulgarmos detalhes e informações que pertencem às suas vidas íntimas e privadas (como a primeira menstruação, comentarmos seus pesos publicamente, falarmos delas como se não estivessem ali ouvindo, lermos seus diários pessoais e falarmos disso aos demais).
Nós estamos constantemente transmitindo a mensagem de que os corpos das crianças são públicos. Que seus pensamentos, opiniões e ideias não importam. Que elas são invisíveis. Que tipo de adultos podemos criar? Podemos mesmo esperar um bom resultado assim?
E não. “Fui criada assim e não morri” não é uma resposta aceitável.
5 Formas que os Pais Infringem a Privacidade da Criança
1 – Lendo seus diários pessoais
Talvez das coisas mais comuns e que parecem mais bobas, mas que passam uma mensagem clara e opressiva às crianças. Ler os diários das crianças, partilhar com outros da família ou comentar com terceiros (e a criança descobrir!) ensina a criança a não confiar em seus pais. Invés de aproximar pais e filhos, isso tende a afastá-los, pois sentem que seus pensamentos ou ‘segredos’ não serão respeitados. Ou seja, isso faz com que as crianças e adolescentes contem menos aos seus pais – e não tem nada pior do que ficar no escuro sobre a vida de seus filhos.
2 – Contando sobre a primeira menstruação a outros sem permissão
A primeira menstruação ainda é um tema tabu para meninas e pode ser um momento difícil de lidar para muitas delas. Contar isso para tudo e todos não é a maneira mais apoiadora de fazê-la lidar bem com isso. Pelo contrário: isso fará com que ela sinta ainda mais vergonha de seu corpo, que sinta que tem menos barreiras (visto que seu corpo é tratado como interesse público) e perderá a confiança nos pais.
3 – Entrar no quarto sem bater/avisar ou obrigando a manter a porta aberta
Junto da frase “nada nessa casa é seu”, isso definitivamente é uma forma de violar a privacidade das crianças e adolescentes, fazendo da casa não um lugar de acolhimento, mas um lugar hostil. Ali, a criança sente que não há uma relação de confiança, mas sim uma relação opressiva e autoritária de desconfiança, descredibilidade e vigilância. Isso apenas suscita mais comportamentos de “ocultar” e “escapar” aos olhos dos pais, o que é sempre um problema.
4 – Expondo sentimentos ou episódios privados da vida das crianças abertamente
Um clássico dos almoços de família, em que, infelizmente, muitas vezes a diversão é deixar alguém se sentindo mal ou envergonhado. Geralmente, a criança é o alvo mais fácil. Falar sobre aquele menino ou menina que sua criança/adoelscente gosta e confessou apenas pra você. Falar da relação que ela tinha com não sei quem ou de como ela chorou porque estava triste por alguém ou por discutir com o/a amigo/amiga. Falar sobre um episódio embaraçoso que ela teve (pode ser um pum, um tombo, qualquer coisa) apenas para fazer os outros rirem às custas dela se sentir mal.
5 – Comentar sobre seus corpos publicamente
Gordo, magro, espinha, feio, bonito. Falar dos corpos das crianças com outros, publicamente, sejam amigos ou parentes, é uma forma de invadir sua privacidade. Sim, a privacidade inclui o direito à vida íntima, a informações pessoais, à vida privada. Isso inclui não tornar nossos corpos públicos. A consequência desses comentários perniciosos e jocosos sobre o corpo geralmente é anorexia, bulimia, transtornos de autoimagem, de autoestima e problemas de socialização. Evite.
6 – Publicar imagens e vídeos online sem consentimento
Sim. A internet faz-nos pensar que podemos publicar tudo, que temos controle sobre tudo. Mas a internet não é um lugar seguro. Terão as crianças direito à sua própria imagem? Ou isso pertence aos pais? E quando os próprios pais não sabem os riscos de expor a imagem da criança dessa forma?
Poderia falar dos casos de sequestro de crianças em que a maioria da informação foi recolhida pelos sequestradores através da rede dos pais, vendo fotos do uniforme das escolas, localizações e comentários sobre a rotina da criança. Poderia falar sobre como exploradores geralmente fazem pornografia infantil com conteúdo (fotos e vídeos) que os próprios pais e mães publicam ingenuamente na rede, sem malícia. Poderia falar das crianças que viram memes e são zombadas e sofrem bullying na escola. Mas não preciso.
Não é preciso falar dos casos extremos, podemos simplesmente questionar: a criança pode decidir se quer ou não estar exposta dessa forma nas redes? A rede é dos pais, mas a imagem é da criança. Como ela crescerá lidando com essa exposição? Uma exposição que não foi ela própria que escolheu e decidiu. Ela não teve voz, apesar de ser sobre ela.
Se queremos ter visibilidade sobre a vida de nossos filhos, se queremos educá-los como pessoas emocionalmente seguras e que rompam com o ciclo vicioso de violência que a sociedade ensina e impõe, temos de fazer isso na base da confiança. Estabelecendo relações saudáveis e de confiança com nossos filhos, na base da troca e do diálogo. Não da opressão e do medo.
Só assim poderemos quebrar o ciclo de violência.